It's a one time thing
It just happens a lot

Suzanne Vega

domingo, 31 de maio de 2015

It's a long way to the top (If you wanna rock' n'roll), AC/DC 

AC/DC! Mas que espectáculo de banda. Num tempo pré-histórico - bem, meados dos anos 70 - em que a Austrália era virtualmente inexistente em termos mediáticos e artísticos, surge este combo de hard rock com uma fórmula sonora tão simples e eficaz, e com uma ética de trabalho incansável, de modo que a dominação global apenas podia ser uma questão de tempo.
São daquelas bandas de que se ouve os primeiros segundos de uma canção e se diz logo: Isto é AC/DC. E como grande banda, tiveram grandes dramas. O maior foi a morte do vocalista/letrista Bon Scott, em Londres em Fevereiro de 1980. It's a long way to the top é um dos temas que definiram os AC/DC. O primeiro grande êxito (abre o álbum TNT, versão australiana, em 1975), e o ponto em que o seu som inicial ficou definido - a segunda paleta sonora seria refinada pelo produtor Robert Mutt Lange nos primórdios dos anos 80 com Back in Black.
E é também considerada como "a filha" de Bon Scott, quer pela letra autobiográfica, contando as vicissitudes das estradas e das digressões pelos ásperos clubes do interior australiano, quer pela junção, pioneira e irrepetível, de gaitas de foles em temas de rock. Foi o próprio Scott que as tocou, em estúdio e depois ao vivo, apesar de nunca antes lhes ter pegado - apenas tinha tocado tambor numa banda escolar.
Os AC/DC e o vocalista que substituiu Bon Scott, Brian Johnson, decidiram, por respeito ao falecido, não a tocar mais ao vivo.
O duelo entre a guitarra de Angus Young e a gaita-de-foles é de tirar o fôlego (trocadilho intencional). O vídeo, nesta versão, foi gravado com a banda num camião a seguir pela Swanston Street, no Centro de Melbourne. E.M.

It's a long way to the top (If you wanna rock'n'roll), AC/DC (1975)
 
   

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Tom Robinson Band, 2-4-6-8 Motorway

Que personagem fascinante é Tom Robinson. Punk rocker/new waver na transição dos anos 70 para os 80, mais tarde respeitado produtor e realizador de rádio (está agora na sempre aprazível BBC6 Music, www.bbc.co.uk/6music), um dos primeiros nomes do rock a empunhar a bandeira da homossexualidade assumida (foi ele que compôs o hino Glad to be gay), o que não o impediu de mais tarde casar com uma mulher e, em meados da década de 1980, ter um par de filhos.
Para além disso, é baixista, o que é sempre meio caminho andado para se dar bem aqui pelo NascidoParaOuvir. Nos seus tempos com a Tom Robinson Band, saiu-se com este 2-4-6-8 Motorway, uma bela rockalhada, com os riffs de guitarra eléctrica a marcarem a cadência dos veículos na auto-estrada à noite. A melodia é livremente baseada em Couldn't get it right, da Climax Blues Band, e o refrão vem direitinho de um canto do movimento homossexual: "2,4,6,8 Gay is good as twice as straight" passa a "2-4-6-8 ain't never too late"... O que não deixa de ser irónico numa música que foi, e continua a ser, tão cantada nos pubs ingleses, muitas vezes antros de homofobia e violência sem sentido.
De qualquer forma, é um exemplo representativo de um tempo em que rock se estilhaçava em várias direcções, mas artistas como Tom Robinson tentavam, mesmo contra os seus instintos, manter uma certa pureza sonora, mas alterando radicalmente alguns vectores sociais. E.M.


Tom Robinson Band, 2-4-6-8 Motorway (1977)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Reef, Place your hands

Quanto tempo se demorava a pronunciar uma vogal nos anos 90? Muito, como se pode ver por este Place your hands, dos ingleses Reef. O vocalista Gary Stringer inscreve-se na tendência por vezes psicadélica, e por outras vezes soul, de se alongar na enunciação das palavras, chamando a emoção e esticando os limites por vezes estreitos do formato rock, ao que se soma ainda o facto de serem surfistas/stoners (Reef quer dizer recife), e terem chegado a uma certa notoriedade no auge do Britpop. Ou seja, um belo jarro de tiques dos anos 90. Por que razão é daquelas canções que me regularmente vêm à cabeça? Talvez porque é soalheira, faz lembrar verões longos e vidas menos comprometidas. E porque nos convida a bater palmas, o que fica sempre bem! Para ouvir com gelo, por favor. E pode-se arquivar junto a Good enough, dos Dodgy. E.M.

Reef, Place your hands (1996)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

AMY, O DOCUMENTÁRIO



O ano de 2014 parece estar a alinhar-se como um bom ano para documentários musicais infelizmente não pelas melhores razões, pois são, até ver, póstumos. Primeiro Cobain, Montage of Heck (já abordado por aqui Cobain, Montage of Heck) e nos próximos meses - esperamos, pois ainda não há certezas e/ou datas para estreia em Portugal - Amy, no qual o realizador britânico 
Asif Kapadia aborda a vida, a carreira os amores e os vícios de Amy Winehouse, essa pequena-grande cantora morta em 2011, aos 27 anos (a idade mítica), por uma overdose.  
Enquanto esperamos por novidades do filme, recuperamos um dos temas do álbum Back in Black (2007). You Know I'm no Good, belo pedaço de trip-hop soul, e com um videoclipe que resume bem a vida caótica e intensa de Amy: música, bebida, homens, instabilidade, traição. E.M.


Amy Winehouse, You know I'm no good (2007) 

domingo, 24 de maio de 2015

Marilyn Monroe, I wanna be loved by you


Megan Fox, Angelina Jolie, Scarlett Johansson... São  muitas, e muito atraentes. Mas nenhuma teve, tem ou terá o apelo universal e inescapável de Marilyn Monroe. Pode-se dizer que foi no auge do "star system" de Hollywood, que foi vendida como algo que nem sequer era ou queria ser. Mas havia realmente qualquer coisa de especial nela, algo para além do corpo, para além da sensualidade. Para além da fragilidade que se veio a revelar fatal e suicidária. E esse algo era uma inocência e uma luta entre um mundo que queria o seu corpo e uma mulher que queria ser amada mas, mais ainda, admirada como actriz. 
Tinha ainda outras qualidades, desde logo como cantora. Não que mostrasse uma grande extensão vocal, mas a forma como acariciava as palavras e swingava a melodia não eram nada de de deitar fora.
Um dois melhores exemplos é este I wanna be loved by you, tema de 1928 recuperado pelo realizador Billy Wilder para o clássico Some Like it Hot em 1959. Lembram-se, aquele em que Jack Lemmon e Tony Curtis se disfarçam de mulheres e entram em digressão com uma orquestra totalmente feminina cuja vocalista é... Marilyn.
O scat de Marilyn ("boo boo bi doo", "a dirli dirli dirli dam") é deliciosamente juvenil, e o acompanhamento orquestral é de um classicismo intemporal - ouça-se o solo de trompete aos 2m13s. Ela foi, e é, "loved by all of us", espero eu.


Marilyn Monroe, I wanna be loved by you (1959) 

sábado, 23 de maio de 2015

BB&Q BAND, ON THE BEAT

De 1981, um espectacular pedaço de funk-disco, bem apropriado para o Verão que já está aí à esquina. BBQ, já agora, referem-se às iniciais de três dos bairros de Nova Iorque: Brooklyn, Bronx e Queens. E.M.

BB&Q Band, On the beat (1981)
 

sexta-feira, 22 de maio de 2015

On Kawara e o tempo, e o tempo, e o tempo

On Kawara (24 de Dezembro de 1932-27 de Junho de 2014) foi um artista conceptual que tratou essencialmente das questões da linguagem, do tempo, da série, da ordem e da obsessão. Uma das suas longas séries, Today [Hoje], consiste em telas rectangulares de fundo escuro, normalmente negro, com a data do dia em que foi feita a acrílico branco, centrada. A obra teria que ser completada durante as 24 horas do dia a que se referia - se tal não fosse, On Kawara destruía-la. Fez mais de 3000, entre Janeiro de 1966 e 2014, à sua morte. Há nestas pinturas uma pureza que me fascina, e um fascínio com a passagem do tempo e a aproximação da morte que, espero, me purifique. A Colecção Berardo tem pelo menos três quadros desta série, mas normalmente não são dos mais expostos. E.M.


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Tramp the dirt down, Elvis Costello (1989)


Agora que o povo inglês deu mais uma maioria absoluta ao Partido Conservador, vale a pena ouvir, reouvir e meditar em Tramp the dirt down. Canção de protesto, de raiva, de sentimento de impotência. Escrita por Elvis Costello, um dos grandes autores do último quartel do século XX. A história é simples: trata-se de uma carta a Margaret Thatcher, então (1989), tal como agora com Cameron, líder e primeiro-ministro. E após dissecar os traços de personalidade da "Dama de Ferro" e os modos de dizimar a união entre os trabalhadores, diz esperar continuar vivo até que ela morra, para assim poder colocar-se em cima da campa dela e com os seus pés calcar a terra.    
A versão original é uma balada com flautas irlandesas (o verdadeiro nome de Elvis é Declan MacManus, e a sua família é originária da Ilha Verde), uma provocação mais numa época em que o IRA tentava activamente assassinar Thatcher. A voz, brilhante de nuances, destila ódio, desprezo, vergonha pelo que o seu país admitiu. E tem versos tão cortantes como "try telling him the subtle difference between justice and contempt" ou "because you've only got the symptoms, you haven't got the whole disease". Costello prometeu que continuaria a cantar Tramp the dirt down enquanto Thatcher não morresse, o que finalmente aconteceu a 8 de Abril de 2013.
Em tempos de vergonha, pela falta de solidariedade e egoísmo desenfreado demonstrados pela (falta de) classe política, que se ouça e se pense. E.M.


Tramp the dirt down, Elvis Costello (1989)





"Tramp The Dirt Down"
I saw a newspaper picture from the political campaign

A woman was kissing a child, who was obviously in pain
She spills with compassion, as that young child's face in her hands she grips
Can you imagine all that greed and avarice coming down on that child's lips
Well I hope I don't die too soon
I pray the Lord my soul to save
Oh I'll be a good boy, I'm trying so hard to behave
Because there's one thing I know, I'd like to live long enough to savour
That's when they finally put you in the ground
I'll stand on your grave and tramp the dirt down

When England was the whore of the world Margeret was her madam
And the future looked as bright and as clear as the black tarmacadam
Well I hope that she sleeps well at night, isn't haunted by every tiny detail
'Cos when she held that lovely face in her hands all she thought of was betrayal

And now the cynical ones say that it all ends the same in the long run
Try telling that to the desperate father who just squeezed the life from his only son
And how it's only voices in your head and dreams you never dreamt
Try telling him the subtle difference between justice and contempt
Try telling me she isn't angry with this pitiful discontent
When they flaunt it in your face as you line up for punishment
And then expect you to say "Thank you" straighten up, look proud and pleased
Because you've only got the symptoms, you haven't got the whole disease
Just like a schoolboy, whose head's like a tin-can filled up with dreams then poured down
the drain
Try telling that to the boys on both sides, being blown to bits or beaten and maimed
Who takes all the glory and none of the shame

Well I hope you live long now, I pray the Lord your soul to keep
I think I'll be going before we fold our arms and start to weep
I never thought for a moment that human life could be so cheap
'Cos when they finally put you in the ground
They'll stand there laughing and tramp the dirt down

terça-feira, 19 de maio de 2015

Vozes femininas de arrepiar mas sem palavras 

Parte 3: Robin Clark, Alive and kicking (Simple Minds)



António Sérgio (vénia) é, apenas, a personalidade mais importante da história da rádio em Portugal. O Lobo da voz de baixo já não está connosco em corpo, mas a sua influência continua, agora que as gerações mais novas são levadas a ouvir os sons que ele fez descobrir aos jovens das décadas de 80 e 90 - por mim, sempre que "impinjo" Ghosts of american astronauts dos Mekons aos meus filhos, sinto um sopro do privilégio que foi poder ser um discípulo do Mestre.   
E uma das características fulcrais de António Sérgio, avançadas pela sua companheira Ana Cristina Ferrão, era a ausência de snobismo musical. Isto é, o homem que conhecia todos os nichos de subsubgéneros e, dada a sua sombra tutelar, podia ser tentado a apenas ouvir e divulgar aquilo que o modelo bem-pensante consideraria de qualidade e não-comercial, estava afinal aberto a tudo o que lhe agradasse aos ouvidos, independentemente de quem viesse. E um dos exemplos que Ana Cristina desvenda é que António Sérgio adorava Ouragan, um pedaço de electro-pop descarado cantado em 1986 pela princesa Stephanie do Mónaco, numa das muitas carreiras que iniciou e não prolongou.  
Vem isto tudo a propósito de Alive and kicking, dos Simple Minds. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que a ouvi no mítico Som da Frente na Rádio Comercial. E de ter ficado espantado por ouvi-la lá. Explicando: o grupo liderado por Jim Kerr tinha lançado uma meia dúzia de discos de post rock de apelo limitado, mas em 1985 Once Upon a Time já era o ponto de chegada do percurso que os levara afinal ao rock bombástico para estádios. E Alive and kicking, o single de avanço, rodava em todos os espaços radiofónicos mainstream e tops. Daí o meu espanto ao ouvir António Sérgio a passá-la. 
Claro que o Lobo tinha razão, e Alive and kicking é simplesmente espectacular, dentro das limitações da produção "larger than life" de meados da década de 80. Um dos pontos que mais me agradam e que fazem a diferença é a participação da vocalista norte-americana Robin Clark, esposa de Carlos Alomar, guitarrista de eleição que durante anos acompanhou David Bowie. 


Após o grande break, aí pelos 3h48s, Robin lança o seu vozeirão e carrega consigo a canção até ao final. Sem palavras, apenas com sons, faz-nos sentir efectivamente vivos e activos. E.M.   


Alive and Kicking, Simple Minds com Robin Clark (1985)


segunda-feira, 18 de maio de 2015

QUEM DISSE? #3

Se Jimi Hendrix tivesse vindo ter comigo naquela noite, não teria morrido.

Quem o diz é Ginger Baker, mais conhecido por ser o baterista dos Cream, geralmente reconhecidos como a primeira superbanda (tinha ainda Eric Clapton na guitarra e voz e Jack Bruce no baixo). A noite a que ele se refere é a de 17 para 18 de Setembro de 1970, em que Jimi Hendrix morreu, asfixiado no seu vómito enquanto dormia. A história de Ginger Baker é que tinha combinado com o guitarrista norte-americano irem a um clube nocturno de Londres, para partilhar, a meias, um jarro (UM JARRO?!?) de cocaína. Conclusão de Ginger: se Jimi tivesse efectivamente ido ter com ele naquela noite, não teria morrido, pois a quantidade de cocaína certamente o teria mantido bem desperto. E.M. 

Para relembrar o grande guitarrista e vocalista:


Wind cries Mary, Jimi Hendrix (1967) 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Onde é que já ouvi isto? Pink Floyd e Van Morrison 

Dia 12, postei uma prosa sobre o álbum Wish You Were Here, grande disco dos Pink Floyd. Agora, também o seu a seu dono. Wish You Were Here foi editado em 1975. E em 1972, ou seja, três anos antes, um pequeno génio irlandês (e de muito mau génio, dizem os que se atrevem a chegar ao pé dele), de nome Van Morrison, pusera cá para fora um belo pedaço de vinil de nome Saint Dominic's Preview, que incluía, por exemplo, Jackie Wilson Said, mais tarde recuperado pelos Dexy's Midnight Runners.

Mas o que interessa aqui são os primeiros 1 minuto e 15 segundos de Almost Independence Day, o longíssimo tema que termina o disco. Ouçam lá, depois escutem o início de Wish you were here (a canção). Cá para mim, Roger Waters e David Gilmour tinham comprado um exemplar de Saint Dominic's Preview, e tinham escutado com muita atenção as guitarras de Van, Doug Messenger e Ron Elliott. Mas pronto, são duas grandes peças de música. E, como diz aquele adágio de que ninguém sabe a autoria, "talent borrows, genius steals". E.M.

Para comparar:


 Van Morrison, Almost Independence Day


 Pink Floyd, Wish you were here

quinta-feira, 14 de maio de 2015

The Clash, The leader


Sandinista, o triplo álbum dos The Clash de 1980, é um caldeirão de 36 músicas que vão desde o sublime ao dispensável. Na primeira categoria cabe este The leader, um portento de concisão - 1 minutos e 40 segundos e uma história completa contada, bem como uma lição em política, ética e comunicação de massas. Explicação: trata das aventuras de espionagem e de alcova de ministros britânicos e amigas íntimas e os seus amigos diplomatas do Bloco de Leste, de que o Caso Profumo foi, nos anos 60, talvez o mais famoso. 
The Leader começa ainda colado ao anterior tema (Ivan meets G.I. Joe, que também trata das relações EUS-URSS), apenas com as guitarras-ritmo e o hi hat (pratos sobrepostos) de Topper Headon, e Joe Strumer cantando sincopado: "Atom secrets / secret leaflet / have the boys found the leak yet / the mole hill set the wheels in motion / his downfall picks up locomotion." Ficamos logos agarrados, claro. Depois entra o baixo, os rapazes tossem, mandam uns "yeah" e cospem o refrão "the people must have something good to read, on a sunday" - ou seja, a abordagem selvagem dos tablóides. As vinhetas de escândalos continuam sem parar, e tudo acaba com uma pianola a rebolar. Perfeito. Volto sempre atrás, e penso muitas vezes que um género como o rockabilly pode afinal ser retocado. E.M.  



The Clash, The leader (1980)

terça-feira, 12 de maio de 2015

Podia ser perfeito, mas... 


Wish You Were, Pink Floyd (álbum, 1975)

No tempo em que a música era apreciada em blocos - x anos de espera, depois um disco com uma dezena de canções, e para ser ouvido todo, e com calma, por ordem de alinhamento -, havia um certo prazer em descobrir em que lugar da hierarquia pessoal (ou de grupo de amigos, que era muito importante) ficaria um determinado disco, quer fosse uma novidade, quer fosse um clássico. E o ponto alto era a discussão que se instalava quando alguém "descobria" um disco perfeito. Wish You Were Here, a obra dos Pink Floyd de 1975, foi um dos casos em apreço. Quanto a mim, lamento, mas seria perfeito se... Já lá vamos.

Como sucessor de Dark Side of The Moon, Wish You Were Here teria sempre uma tarefa difícil para se impor no cânone dos Floyd. As próprias composições foram demoradas, numa altura em que o grupo estava em fase de baixa criatividade, e muitas horas foram passadas em estúdio sem resultados práticos. A situação foi resolvida quando Roger Waters (baixo e voz), em mais um passo no processo de tomada de assalto da liderança da banda, avançou com um conceito que unificasse os trabalhos: alienação, quer do Homem face aos seus semelhantes via tecnologia, quer dos membros da banda entre si, e quer do fundador afastado, devido a problemas mentais, Syd Barrett (que, irreconhecível, fez uma visita aos estúdios da EMI em Abbey Road, os mesmos onde os Beatles gravaram a maioria das suas canções).   

Musicalmente, o álbum vive do imenso fresco que é Shine on You Crazy Diamond, cujas nove partes ficavam tão longas que tiveram que ser divididas em duas autónomas, uma a abrir o disco, outra a fechar. Para muitos, inclusive para David Gilmour (guitarra e voz), esta é a canção mais amada dos Floyd. Tem lá tudo: um imenso saber na moldagem do tempo, a mestria de Rick Wright a construir as camadas de teclados, Gilmour num solo de guitarra eléctrica de assinatura que terá direito a um post próprio mais para a frente, e Waters a cantar como poucas vezes cantou.
Wish you were here, o tema que dá o título ao álbum, é a mais americana das canções dos Floyd, com um pozinhos de country e uma imensidão de guitarras acústicas gilmourianas a ampararem uma das mais citadas letras de Waters (e difíceis de cantar, experimentem subir de oitava na linha inicial no "tell"...).
Roy Harper, esse inglesíssimo trovador que nunca se conseguiu impor de acordo com o talento que tem, é convidado a cantar Have a cigar, relato sardónico da insatisfação de Waters na relação com as editoras discográficas. É aqui que surge a famosa, e pelos visto efectivamente dita por um executivo de uma multinacional aos Floyd, "by the way, which one is Pink?". Sonoramente, é um blues espacial, pontuado pelos soluços de uma guitarra wah wah.
Então, é um dos tais discos perfeitos? Não, porque o quinto tema, Welcome to the machine, é uma imensa sensaboria, sem melodia, sem ritmo, totalmente falho de ideias, com uma letra que meteria dó se escrita por um miúdo da primária. E sim, Roger, temos muita pena que tenhas sido integrado na "Máquina", que em retorno apenas te tornou num multimilionário famoso...

Grande disco, obviamente, e cuja audição implica apenas fazer skip do botão/agulha no final da parte V de Shine...,  e assim evitar Welcome to the machine. Para ilustrar, ficamos com Have a cigar. "Take it away", Roy. E.M.

Pink Floyd, Have a cigar (1975)


Vídeos imortais #1

Nick Cave, Into my arms

Quão especial é esta canção e este vídeo? Tão especial que várias vezes comecei o post e outras tantas vezes parei. Com tanto para dizer, mas sem saber por onde começar. Com receio de não fazer justiça ao que ouço e vejo. Mas como diz o ditado tão abusado, o caminho faz-se andando. Sendo, então:

Nick Cave é um dos grandes compositores e intérpretes das últimas décadas. De uma forma geral, manteve-se fora do mainstream, com uma ou outra incursão nas tabelas de vendas (como no dueto com a sua compatriota australiana Kylie Minogue em Where the wild roses grow). Mas não tão afastado que não chegasse a uma pequena multidão conhecedora da força das suas canções.
Em 1997, com a sua fiel banda The Bad Seeds, edita o álbum The Boatman's Call. Era um disco mais intimista que os anteriores, muito baseado em piano e voz. Os temas continuavam sempre algures entre o amor e a religião. E este Into my arms com que abre as hostilidades consegue plasmar de forma perfeita essas duas estradas. É uma canção de amor completa (talvez dedicada à brasileira Viviane, mãe do seu filho Luke, ou a PJ Harvey, por quem teve uma curta mas avassaladora paixão e que é a West Country Girl que surge na canção com o mesmo título mais para a frente neste disco). Nela pede a Deus, no qual não acredita, que proteja a sua amada, que nada de mal lhe aconteça.
O vídeo (realizado por Jonathan Glazer) é de um ascetismo absoluto. Totalmente a preto e branco, consiste "apenas" em imagens interpoladas de Cave a cantar e de várias outras pessoas, homens, mulheres, crianças, negros, brancos, em sofrimento. Todo o sofrimento do Mundo quando a canção que Cave compôs e canta quer que não se sofra. O momento em que um grande artista se torna um absoluto universal. E.M.
 

Nick Cave, Into my arms (1997)

I don't believe in an interventionist God
But I know darling, that you do
But if I did I would kneel down and ask him
Not to intervene when it came to you
Oh, not to touch a hair on your head
Leave you as you are
If he felt he had to direct you
Then direct you into my arms

(chorus)
Into my arms, oh Lord
Into my arms, oh Lord
Into my arms, oh Lord
Into my arms

 
And I don't believe in the existence of angels
But looking at you I wonder if that's true
But if I did I would summon them together
And ask them to watch over you
And to each burn a candle for you
To make bright and clear your path
And to walk, like Christ, in grace and love
And guide you into my arms

 
But I believe in love
And I know that you do too
And I believe in some kind of path
That we can walk down, me and you
So keep your candles burning
Make her journey bright and pure
That she will keep returning
Always and evermore




segunda-feira, 11 de maio de 2015


Mário Mata, Há dias de manhã


É daquelas músicas que passaram despercebidas, de tal forma que é referida de várias formas, mas o seu nome verdadeiro é Há dias de manhã e foi editada em 1994, no álbum Somos Portugueses. Um disco de Mário Mata, um homem que pareceu sempre estar um pouco fora de tempos. Em pleno boom do rock português, lançou um tema que intervenção bem-disposta e bem-intencionada - Não há nada pra ninguém, que entrou no subconsciente nacional e que tantas vezes usamos. Em meados dos anos 90, outros companheiros de estrada com afinidades estéticas, como os Sitiados ou os Quinta do Bill, tinham conseguido a evolução. De Mário, que tinha grandes intervalos de sumiço, pouco se esperava. Mas eis que surge este pedaço de história nacional em forma de canção. Aliás, devia ser utilizada nas aulas de História, Sociologia, etc. nas escolas secundárias. Como ele bem diz, é a história da férias, das férias que se faz no Algarve, arrumando o carro até mais não poder, descendo, cheios de sede, até à (então) nova e sem portagens Via do Infante, dava-se um salto a Espanha...    
É um tema tipicamente popular português, algures entre o libertário e trocadilho, com o bombo e cavaquinho para dançar nas festas de Verão ou cantar com os amigos com uma fresquinha na mão, e para pensar naquelas situações problemáticas em que, como Mário avança de forma tão profunda... "há dias de manhã que nem de tarde se deve sair à noite". E o que dizer das suas interjeições tipicamente algarvias? "Está tudo mais avariado que um chalavar de caranguejo." "Vai-te embora, choco, estás deixar a água turva." Esta vai ser cantada em viagens para a praia, que o calor já chegou. E.M.

P.S.: O vídeo retirado com a devida vénia do Youtube tem a capa do álbum de estreia, Não Há Nada P'ra Ninguém, de 1981.

Há dias de manhã, Mário Mata (1994)
 

domingo, 10 de maio de 2015

This Mortal Coil, I want to live

Após Carlos, algo completamente diferente. I want to live, do projecto This Mortal Coil em 1986. Para quem não é desses tempos, não se lembra ou andava distraído a ouvir italo-disco, This Mortal Coil era o nome de guerra de um trio de discos pensados por Ivo Watts-Russell, o patrão da editora britânica 4AD, e concretizados pelo próprio e uma série de músicos convidados, a maioria deles de bandas que tinham assinado pela 4AD. Metade instrumentais atmosféricos, metade versões arrepiantes de originais obscuros, foram discos de eleição para muito jovem sublimar existências suburbanas anódinas.  
No segundo álbum, Filigree and Shadow, um duplo cuja versão em vinil é tão artística que a tinta prateada dos invólucros se derretia em mãos quentes, surgia uma daquelas canções que me ficaram incrustadas e que, se tiver mesmo que morrer um dia, então I want to live está na short list das músicas para passar no meu funeral. Desde logo pelo título... O andamento é lentíssimo, os teclados tétricos dominam, a batida sintetizada quando surge parece um pacemaker a assombrar. Mas o que mais arrepia são as vozes, das irmãs Louise e Deirdre Rutkowsky, duas escocesas que Ivo descortinou e que voltaram depois para o anonimato. Mas tal desaparecimento foi a nossa perda, pois são duas vozes perfeitamente celestiais, tão integradas na canção que quase vemos os seus fantasmas a passar pelo éter. E o mais curioso é que, tal como na letra se vão alternando "I want to live" com "I want to die", também este tema me vai levando da tristeza profunda a uma exaltação quase mística perto da alegria. Companheira de tantas horas, soa.

I want to live, This Mortal Coil (1986)  
    


Em formato "country épico" e muito recomendável também é versão original, da dupla norte-americana Gary Ogan e Bill Lamb, de 1972. Podem visitar aqui:


sexta-feira, 8 de maio de 2015

Atenção! Pirosidade à frente #1

Rosalie, Carlos (1979)


O medo do ridículo, o maria-vai-com-as-outras estético, o politicamente correcto musical... Nada disso pega por aqui. No NascidoParaOuvir estamos (também) abertos ao piroso, ao antigo, ao popular, ao fora de moda, ao divertido, às memórias de festa.
E para inaugurar esta rubrica, "Atenção! Pirosidade à frente", convocámos Carlos. Grande artista francês, quer no sentido físico, quer na alegria contagiante. Em 1979 fez uma versão de Rosalie, editada dois anos antes pelo conjunto de George Plonquitte, um cantor de Guadalupe. E Carlos, com as suas camisas havaianas, as suas flores, a sua barba, a sua barriguinha, a sua dança, o seu prazer de viver, faz desta canção de ninar caribenha - Rosalie, depreende-se, era a ama que tratava dos dói-dóis do bebé... - uma verdadeira delícia para dançar sem pensar em mais. Atente-se, no entanto, nalgumas piadas musicais que por aqui passam - as melhores, como se sabe, são dadas pelo saxofone-baixo. A qualidade do vídeo não é das melhores, mas dá bem uma ideia dos programas de variedades dessas décadas idas - por exemplo, isto era muito pedido no "Quando o Telefone Toca", o mítico espaço da Rádio Comercial com músicas pedidas. "Mais qu'est-ce que t'as Doudou, dis donc?" Siga o bailarico. E.M. 


Rosalie, Carlos (1979)


quinta-feira, 7 de maio de 2015

My Bass and Other Animals, Guy Pratt


Guy Pratt (nascido em 1962, Londres) é o autor de um dos meus livros de cabeceira - My Bass and Other Animals. Só o nome já é todo um programa: guitarra-baixo - o meu instrumento preferido - e uma referência directa a esse outro clássico das biografias e do humor, My Family and Other Animals, em que o naturalista e biólogo Gerald Durrell conta as suas aventuras de infância com os familiares na ilha grega de Corfu nos anos 1930, e que é também uma leitura extremamente recomendável.  

Quanto a Guy Pratt, obviamente, é baixista - excelente, diga-se de passagem. Podem comprovar, por exemplo, aqui:




Por volta de 2005, estava, por assim dizer, em fase de acalmia no mercado laboral. Até que se lembrou de todas as histórias que lhe tinham acontecido ou a que tinha assistido ao longo de uma carreira em que colaborou com todos e mais alguns: Bryan Ferry, David Bowie, Madonna, Michael Jackson, Jimmy Page ou, acima de tudo, os Pink Floyd. Aliás, de tal maneira que acabou por casar com a filha do teclista Rick Wright (a entourage da banda conhecia Gala desde que esta nascera e, protectores que eram e conhecedores das maluqueiras de Pratt, estiveram muito próximos de o correr à paulada!).
Reuniu numas notas as suas memórias, fez uma primeira sessão de stand-up no Groucho Club (lendária sala de Londres que foi o epicentro da vida social musical no Britpop, e do qual Guy é sócio, por ter sido o único colaborador dos Floyd a aceitar uma proposta de adesão feita por... David Gilmour, sim, o homem que canta Wish you were here). 
A sessão correu bem, passados meses estava no Festival de Teatro de Edimburgo, e depois foi só compilar em livro, este de que aqui vos mostro a capa, editado em 2007 e que pode ser comprado pela Internet (não há tradução em português).


O sentido de humor de Guy Pratt é imenso, culto sem ser snob, e escreve de uma maneira que só posso descrever como rock'n'roll: rápida, directa, emocional, exuberante e, por vezes, discreta (nunca é agradável receber cartas dos advogados de estrelas musicais a ameaçar processos de difamação). O seu amor pela música nunca se perde de vista, e fica-se com uma bela ideia do que era a vida de um músico de sessão das primeiras divisões nos heróicos anos 80 e 90. E não se leva demasiado a sério.

Se puderem deitar a mão a este livro, não hesitem. Entre os meus episódios favoritos: 
- quando Guy, embriagado no estúdio do Sussex onde os Smiths estavam a gravar, esteve dez minutos de manhãzinha a bater à porta de Morrissey (pensando que era a do guitarrista Johnny Marr). O delicado vocalista ficou tão traumatizado que apanhou o primeiro comboio para Londres;   
- quando, em palco com o duo Womack & Womack, assistiu à convidada Mary Wells entrar em palco com um bebé e atirá-lo pelo ar para um roadie (?!?!);
- quando Tina Turner lhe pediu para tornar "mais púrpura" som do baixo de Simply the best ...
- quando esteve dias a gravar para Earth song, de Michael Jackson, quando este estava escondido... debaixo da mesa de mistura do estúdio. 

Imperdível. E.M. 
   

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Narcotic, Liquido


O muito estimado crítico e divulgador musical Davide Pinheiro, companheiro de lides noutras vidas musicais, disse-me uma vez que Narcotic, dos alemães Liquido (1998), poderia muito bem ser a pior canção de sempre. Sabemos que os opinadores têm tendência para a hipérbole, e neste caso não só hipérbole como também parábola e secante e toda a panóplia de figuras geométrico-literárias. Mas percebo que Narcotic recolha as características necessárias para ser atacada - e que, pelo contrário, podem, no meu caso, ser usadas exactamente para a valorizar. São de um país não conotado com rock de qualidade (Alemanha), visualmente pouco apelativos, com uma apropriação algo particular da língua inglesa, e Narcotic trata, de uma forma ingénua, ou subversiva, de um tema polémico - drogas, mais concretamente cocaína, que parecem defender.
Acho a canção muito curiosa, o riff de sintetizador é inescapável, e a maneira como tentam disfarçar "my cocaine" com "Michael Caine" é simplesmente hilariante. E o videoclipe é giríssimo, com uma panóplia de cores primárias, totalmente em estúdio com modelos a fazer jardinagem nas janelas e a atirar coisas uns aos outros. Claramente anos 90 - parte conceito, parte diversão, parte recuperação dos anos 70. "Enjoy!" E.M.


Narcotic, Liquido (1998)  

terça-feira, 5 de maio de 2015

Calypso e críquete


Aqui pelo Nascido para Ouvir, o desporto favorito é o críquete. Num país futebolcêntrico como é Portugal, isto é considerado parte elitismo, parte provocação ao pontapé na bola, que o críquete não tem ritmo, dura muito, e as suas regras são muito obscuras. Mas respondamos por partes: o críquete não é de forma alguma um desporto de elites, tem centenas de milhões de seguidores por esse Mundo fora, naturalmente mais concentrados nas regiões onde a influência do Império Britânico se faz sentir (a Índia, por exemplo, onde os jogadores mais famosos, como MS Dhoni, Virat Kholi ou o infelizmente já retirado "Pequeno Mestre" - pequeno em altura, que não no imenso talento - Sachin Tendulkar, têm legiões de seguidores que fariam corar de vergonha muitas supostas estrelas do futebol). Depois, e sem retirar que efectivamente pode demorar dias, um jogo de críquete tem emoção a rodos, picos de ritmo intensos, e as regras são muito fáceis. Qualquer criança as aprende. Aliás, um dos efeitos da imigração asiática para Portugal começa a notar-se nas zonas da Graça e Mouraria/Anjos, onde jovens paquistaneses ou indianos jogam, na medida do possível, uma aproximação ao críquete.

Quem tem interesse pelo desporto pode procurar na Internet, onde se pode assistir aos principais campeonatos e séries a nível mundial. Agora, por exemplo, está a decorrer uma série de três jogos em formato "test match" - o maior, que pode durar quatro ou cinco dias - entre as principais selecções da Inglaterra e das Índias Ocidentais: aqui incluem-se jogadores das várias nações caribenhas, como a Jamaica, Barbados, Tobago ou Santa Lucia. No primeiro jogo, em Granada, a vitória foi para os europeus; o segundo, em Barbados, terminado no domingo, parecia ir pelo mesmo caminho, mas as West Indies fizeram uma recuperação notável e, no final de tarde no Kensington Oval, deram uma imensa alegria à multidão que se aglomerava nos stands.
Nessa noite, é muito provável que pelos bares das Antilhas se tenha ouvido um tema chamado Rally around the West Indies. É um calypso editado em 1990 por David Rudder, no qual o artista da Trinidad, lembrando o domínio que as Índias Ocidentais tinham exercido ao longo da década anterior, lamenta que a qualidade da equipa esteja a decrescer, e insta todos os caribenhos a juntarem-se e apoiarem a selecção da sua região. De tal forma o tema pegou, que é agora o hino oficial da equipa das Índias Ocidentais, e como tal passado antes dos jogos internacionais. E.M.    


Rally around the West IndiesDavid Rudder (1990) 

   

segunda-feira, 4 de maio de 2015

JÁ NÃO HÁ PACHORRA PARA... HOTEL CALIFORNIA




Em finais dos anos 70 e na década de 80 não havia festa de garagem nem sessão de discoteca rock em que não se passasse Hotel California, o tema que dava o título ao álbum de 1976 dos Eagles. Uma, duas, três vezes.. E nessa altura até era engraçadita, com o seu estranho ritmo que tanto permitia dançar sozinho à "air guitar", ou agarradinhos com o nosso par. Mas à medida que se foi crescendo e a cançãozinha se ia tornando inescapável nas ondas hertzianas, o cansaço começou a instalar-se, e actualmente... Já não há pachorra. Seja pela letra presunçosa e tecnicamente ininteligível; quer pela apologia de um tipo de vida típico dos ricos do Sul da Califórnia; seja pelo tom sempre ligeiramente desafinado de vozes e instrumentos ao longo dos seis minutos e meio; quer seja pelo chatíssimo solo de duas guitarras em duelo no final... O narrador na canção termina a ouvir dizer que pode fazer o "check out" do Hotel California sempre que quiser, mas que nunca poderá de lá sair. Podia ser pior. Podia ter que lá ficar a ouvir Hotel California em "loop"! E.M.

domingo, 3 de maio de 2015

Vozes femininas de arrepiar mas sem palavras 

Parte 2: Clare Torry, The great gig in the sky (Pink Floyd)


Mesmo num álbum recheadinho de pontos altos como é Dark Side of The Moon, o clássico de 1973 dos Pink Floyd, The great gig in the sky sobressai. Primeiro, pela majestosidade que o envolve, fruto dos teclados de Rick Wright, que o compôs, através de acordes sumptuosos. Mas, mais do que tudo, pela belíssima e impositiva presença da voz de Clare Torry. 


Apesar dos seus ternos 26 anos, Clare era já uma veterana dos estúdios de gravação londrinos. Quando os Pink Floyd a contactaram para "gritar" por cima do instrumental, ela não se mostrou muito receptiva - parece que tinha bilhetes para um concerto de Chuck Berry... Felizmente que lá foi. Os Floyd não lhe deram grandes indicações sobre o que devia fazer, e ela começou a improvisar na base do "yeah, baby, hoo". Mas não era isso que eles tinham em mente. Decidiu então que usaria a voz como um instrumento, criando como que um drone de subidas e descidas. Gravou dois "takes", e começou ainda um terceiro, mas parou a meio deste, dizendo que já tinha dado o melhor de si que e que começava a repetir-se. Pegou nas 30 libras correspondentes ao pagamento de uma sessão e zarpou. Os Floyd ficaram extremamente impressionados com a obra vocal dela, mas, e dentro da sua famosa reserva britânica, não o deram a perceber. Só meses mais tarde, quando o álbum foi editado, Clare olhou para os créditos e viu o seu nome lá escrito.

                                        The great gig in the sky, Pink Floyd com Clare Torry (1973)


O disco tornou-se um dos mais vendidos de sempre e em 2004 Clare, farta de ouvir o "seu" tema a ser passado e elogiado e sem por isso receber qualquer recompensa, decidiu processar o grupo. Os tribunais deram-lhe razão, e uma soma de compensação cujo valor não foi revelado, passando a ser considerada co-compositora, a par de Richard Wright - aliás, desde 2005 as novas edições do álbum trazem exactamente isso escrito nos créditos.
E embora normalmente este tipo de recursos judiciais sejam um abuso e tentativas de sacar umas coroas não merecidas, neste caso há que dá a mão à palmatória: a voz de Clare, e a performance que idealizou e concretizou, são partes fundamentais na definição do "grande espectáculo no céu". E.M. 


sábado, 2 de maio de 2015

Cobain: Montage of Heck - já visto, e inquietante


Avançado aqui em post de 25 de Abril, visionado no Monumental (Lisboa), Cobain: Montage of Heck. Documentário sobre o líder dos Nirvana, que se suicidou em Abril de 1994.
Algumas notas soltas:
- Brett Morgen, o realizador, é claramente um apaixonado pela personagem que documenta. De aplaudir a sua pertinácia, que o terá levado a aborrecer tanto os principais intervenientes na vida familiar e musical de Kurt que, e nas suas próprias palavras no que concerne à viúva, Courtney Love, "ela me disse para eu fazer o que quisesse com o material, só viu quando já estava montado".
- Morgen estava convencido que o espólio de Cobain seria imenso. Afinal, resumia-se a apenas uma pequena sala. Mas aí estava material com imenso potencial, nomeadamente os cadernos de rabiscos, rascunhos e pensamentos que a mãe guardou, na totalidade.
- Com este material Brett fez um trabalho essencialmente de animação, tal como na recriação de partes da vida de Cobain enquanto adolescente, e em sequências de ampliação e entrosamento das várias páginas de desenhos.
- Boa utilização de entrevistados, nomeadamente da mãe e da primeira namorada oficial, e do baixista dos Nirvana, Kris Novoselic. De estranhar a ausência do terceiro Nirvana, Dave Grohl, normalmente aberto a recordar sem problemas os seus tempos na banda.  
- Impressionantes as gravações caseiras dos últimos anos de vida, já com a filha Frances. Basicamente, imagens de um drogado em quem é difícil perceber a centelha do génio.
- A ideia final é de um homem que sabia perfeitamente o que queria, mas nunca encontrou forças para repelir o que não queria. Ou seja, e de novo referindo as declarações de Love, "o objectivo dele era ganhar três milhões [de dólares] e tornar-se um junkie". Objectivo alcançado. Mas para isso teve que se vender, assinando por uma editora multinacional, teve que dar entrevistas às "corporate magazines", apesar de usar T-shirts a negá-lo. E teve que levar uma vida agitada que o consumia, dando-lhe cabo de uma saúde que sempre fora frágil. 
- Kurt Cobain morreu sozinho, com um tiro de caçadeira na sua garagem em Seattle. A sua mulher (que afirma que nunca foi tão monógama como Kurt, e que, com a sua morte e a sua santificação, ficou apanhada na armadilha de Yoko Ono) estava em Los Angeles. O "porta-voz de uma geração" não tinha ao pé de si um único dos seus seguidores. 
- O que verdadeiramente importa - a música - continua pungente. Este é daqueles casos em que a morte prematura deixa efectivamente muitas esperanças perdidas do que poderia ainda ser criado. Em solidão acústica, em grunge alucinado, em lo fi experimental, Kurt afinal tinha a centelha.  

Cobain: Montage of Heck (2015), trailer




sexta-feira, 1 de maio de 2015

Amanhã, Duo Ouro Negro


Sobre o Duo Ouro Negro, o essencial está nas notas críticas da caixa de 4 CD "Duo Ouro Negro - O Essencial", editada em 2010, e elaboradas pelo João Bonifácio, esse escriba desvairadamente brilhante (ou brilhantemente desvairado, sei lá eu). 
Em traços largos, assino por baixo. Um projecto brilhante, musicalmente falando, conseguindo modernizar sem renegar as suas raízes tradicionais e mantendo um ouvido muito bem aberto ao que se passava no resto do mundo musical. O turbilhão da História não foi favorável a Raul Aires/Indipwo e Milo MacMahon, ambos já falecidos e provenientes da zona de Benguela, apanhados entre países, nacionalidades, línguas, guerras, independências e lealdades várias e quase sempre contraditórias. Mas entre fins dos anos 50 e o início da década de 70, eram ubíquos nas terras quentes onde nasci.
Para mim, é uma via rápida para a minha Angola, para as noites em que ficava acordado na cama a ouvir as cantorias e percussões dos populares desenfreados na ponta do pontão. Amanhã é um hino de amor a Luanda, e por extensão a toda a Angola, e por conseguinte um tema que me traz uma lágrima no canto do olho, como diria outro grande de África, Bonga. Com uma linha vocal com tanto de ocidental como de africana, com guitarras acústicas que viajam do musseque para o banlieu, e percussões que se podem adquirir em qualquer ponto do planeta, Amanhã é efectivamente o que se pode dizer a verdadeira world music, muito antes de o tema cunhado pelo etnomusicólogo Robert Brown se ter disseminado. Para o Mundo, mas intrinsecamente angolana. 


Amanhã, Duo Ouro Negro (1971)