It's a one time thing
It just happens a lot

Suzanne Vega

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Le deserteur, Boris Vian

Primeira aparição da música francesa, outro riquíssimo veio artístico, infelizmente em rápida perda de exposição por terras lusas, pois, apesar dos esforços aos mais altos níveis das autoridades francesas, a vaga anglo-americana submerge quase tudo.
Se o presente não é brilhante - apesar de, por exemplo, a língua francesa se ter adaptado maravilhosamente ao rap e ao hip hop e ter imensas interacções com a música da África Ocidental e caribenha -, regressemos ao passado. E a uma música que a minha professora de Francês do 10º ano (muito obrigado, "setora" de que não me lembro nome nem face, mas de que nunca esqueci a canção) nos fez ouvir e reflectir. Chama-se Le deserteur - O desertor -, foi escrita em 1954 pelo artista completo Boris Vian (escritor, compositor, poeta, cantor, instrumentista), e é um dos mais duradouros hinos à paz, ou melhor, contra a guerra. A letra é magistral, de uma simplicidade de termos perfeitamente oposta à magnitude de ideias e sentimentos. Uma declaração sincopada, assente em rimas claras no "ére", no "ombe", no "irer", no "ent", do Monsieur Le President. O presidente da República Francesa, que mandava o narrador apresentar-se, até ao meio-dia da quarta-feira seguinte, no quartel para seguir para a guerra. E o resto é a explicação por que não vai para a guerra, que não está sobre este terra para matar pobres pessoas, e que se é para ir para a guerra, então que vá o presidente, que está em boa forma para isso. Quase parece uma canção de ninar... Nos 60 anos que passaram desde que Vian compôs Le deserteur, as guerras não desapareceram, nem diminuíram. E quantas professoras de Francês irão neste ano lectivo apresentar esta pérola aos seus alunos? E.M.

Boris Vian, Le deserteur (1955)

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Vozes femininas de arrepiar mas sem palavras

Parte 1: Yannick Étienne, Avalon (Roxy Music)


A Rádio Comercial efectuou em 1982 um concurso em que oferecia exemplares do novíssimo álbum dos Roxy Music, Avalon. Só tinha que se mandar um postal com uma frase a definir o disco. Nunca me esqueci da frase vencedora: "Música de veludo numa embalagem de cetim." E era mesmo. O último registo oficial de Bryan Ferry sob o nome da banda é um pedaço de pop tão elegante que só lhe faltava vir com um martini e uma cigarrilha. O tema-título é uma espécie de electro bossa-nova, com alguns requintes tropicais, pelo menos do que alguém tão intrinsecamente british como o vocalista podia considerar tropical. Mas o que eleva o tema ao paraíso musical é a presença, fortíssima no final da canção, da vocalista Yannick Étienne.


Pouco se sabe dela, para além de que é haitiana e que estava com uma banda a gravar umas demos no mesmo estúdio onde os Roxy Music gravavam o álbum - o Compass Point, em Nassau, nas Bahamas. Phil Manzanera, o guitarrista, conta que já estava o disco terminado, mas Avalon, a canção, não funcionava. Voltaram a entrar em estúdio e regravaram-na, com novo ritmo. Mas ainda faltava qualquer coisa. Foi quando Bryan Ferry ouviu Yannick Étienne a cantar. Disse: "Que voz espantosa!" Convidaram-na, e o resto é história. Yannick tem uma voz de soprano maravilhosa, que utiliza apenas como um instrumento, sem palavras, quase como se fosse um pássaro nocturno numa ilha caribenha. Ela não sabia falar um palavra de inglês, pelo que teve que ser o seu namorado a traduzir aquilo que os britânicos desejavam que ela fizesse. O feeling fez tudo. Quando chegamos ao fim de Avalon, não nos lembramos já de Bryan Ferry, só de Yannick. Isso, meus senhores, é magia. E.M.

Avalon, Roxy Music com Yannick Étienne (1982)
 

domingo, 26 de abril de 2015

Que o teu sim seja sim (e o teu não signifique mesmo não) 


Quem o diz são os The Pioneers, no seu maravilhoso Let your yeah be yeah (1971). Um pedaço de soul-reggae jamaicano, é daquelas músicas que me põem imediatamente bem-disposto. E não é só pela limpidez das vozes dos três Pioneers ou da maneira como a melodia nos leva pela mão. É também, e muito, pela letra, que nos incita, através de uma relativamente simples história de atração entre duas pessoas, a sermos sinceros, a dizer a verdade - a que a nossa palavra seja recta, que o nosso sim seja mesmo sim. E se tivermos que dizer não, então que o digamos rápida e gentilmente, sem magoar. Alegria, dança e uma mensagem positiva. Que mais pedir a uma música? Falta ainda agradecer a Jimmy Cliff, que a escreveu, e à Internet, que me permitiu descobrir uma canção que, de outra forma, poderia ficar esquecida na poeira do tempo. 


The Pioneers, Let your yeah be yeah (1971)

sábado, 25 de abril de 2015

Na agenda de cinema: Cobain: Montage of Heck


Estreou-se na quinta-feira em Portugal Cobain: Montage of Heck. Trata-se de um filme realizado pelo norte-americano Brett Morgen, debruçando-se sobre a vida e obra de Kurt Cobain, líder dos Nirvana (e por consequência do movimento grunge da primeira metade dos anos 90), que se suicidou em Abril de 94. Para os fãs do grupo do Nordeste dos States trata-se de uma ocasião de ouro, pois Morgen teve, ao que conta a promoção, acesso à totalidade dos acessos áudio, vídeo e em papel da família do falecido vocalista e guitarrista - ou seja, dos pais e da viúva, Courtney Love. A ascensão dos Nirvana foi amplamente acompanhada pelos media, pelo que há uma curiosidade pertinente para ver realmente o que poderá ter sido descoberto nos arquivos pessoais, e o que isso nos poderá elucidar sobre um génio que deixou mais perguntas e dúvidas do que respostas e certezas sobre quem realmente era.
Este género de películas - documentários sobre música - não costuma durar muito nos ecrãs da região da Grande Lisboa, por isso, prevendo o pior (ou seja, que não passe da primeira semana), é de dar rapidamente um saltinho a um dos seguintes cinemas, em poucas sessões entre as 19h e as 22h15: Monumental, El Corte Inglés, Colombo, Vasco da Gama e Dolce Vita Tejo.

Para relembrar, a espantosa versão ao vivo de All Apologies, no álbum ao vivo Unplugged in New York, gravado poucas semanas antes do suicídio de Cobain, e onde a sua intensa dor está bem aparente, na postura, nas palavras, no respirar.


Nirvana, All apologies (1993/1994)

sexta-feira, 24 de abril de 2015


Sonnabend: Pop (e não só) nas Amoreiras

Sonnabend  Paris - New York
Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva
Praça das Amoreiras, 56, LISBOA
Horário: terça a domingo, das 10h às 18h (encerra segundas e feriados)
Até 3 de Maio



Arman, Infinity of typewriters + Infinity of monkeys + Infinity of time = Hamlet (1962)


Até dia 3 de Maio, está visitável e apetecível a exposição originária da Galeria Sonnabend, no Museu Vieira da Silva, ali na preciosa Praça das Amoreiras (quem sobe do Rato para as Amoreiras é logo à direita). Apresenta-se como de Pop Art, mas se bem que muitos dos seus expoentes lá estejam representados - Oldenburg com as suas esculturas "moles", Warhol com as Caixas Brillo -, muito mais recompensadora é a presença de nomes como Arman (com a instalação/recolha de máquinas de escrever acima apresentada) ou Pistoletto (com espelhos pintados) ou Jim Dine (com a pá preta) que lançam mais pontes para o futuro, nomeadamente a Arte Povera e o conceptualismo. Importante no seu conjunto, mostrando como o Novo Mundo estava a moldar a auto-estrada da informação artística a partir de Nova Iorque nos anos 60. E.M.      






The Wanton Bishops: blues do delta do rio... Jordão




Ah, bendita globalização. Uma das melhores revelações dos últimos anos na área do swamp blues do delta do Mississippi vem de... Beirute! The Wanton Brothers são dois libaneses, Nader Mansour e Eddy Ghossein (ambos basicamente na voz/vozes e guitarras), estão activos como banda desde 2010 e são a prova de que o espírito dos bluesmen do Sul dos Estados Unidos pode reaparecer (em formato menor, é certo) em qualquer lado. "Respect" para os dois Bishops, desde logo pelo nome corajoso num país que continua dividido entre cristãos e muçulmanos, e depois por terem enveredado por um género muito ligado à rebeldia e à noite, numa região em que a adopção de linhas estéticas exógenas é geralmente malvista. Mas reconheça-se também que alguns pozinhos do Próximo Oriente são espalhados - veja-se o cântico de "ha-ha-ha-ha" neste Sleep with the lights on (2011), cartão de apresentação e ainda o tema mais idiossincrático do grupo, e que provém da tradição de encantações e chamamentos espirituais. Há por aqui inspiração nos duos mais rugosos do início do século - White Stripes e Black Keys -, mas também uma preocupante tendência de Mansour para cantar como Eric Clapton... Ou seja, jovens a tentar colocar a sua marca numa tradição centenária. Esperemos que a situação periférica lhes permita desenvolverem ainda mais e melhor as suas opções. E.M.


The Wanton Bishops, Sleep with the lights on (2011)




quarta-feira, 22 de abril de 2015

QUEM DISSE?

"Ringo não é o melhor baterista do Mundo; ele nem sequer é o melhor baterista dos Beatles."

Ao contrário do que muitas vezes se pensa, não foi John Lennon que largou esta farpa sobre o seu baterista nos Fab Four. O escritor e biógrafo dos Beatles Mark Lewisohn foi atrás do assunto, afirma que leu e/ou ouviu todas as entrevistas dadas por Lennon, e que em nenhuma delas ouviu a divertida "boutade". Pesquisou, pesquisou... e chegou à conclusão que foi uma piada criada pelo humorista britânico Jasper Carrott, num programa de "stand-up comedy" em 1983. Ao que parece, o busílis estará no facto de, numa entrevista nos anos 60, um jornalista ter perguntado a John se Ringo era o melhor baterista do Mundo. Carrott ter-se-á aí inspirado para a segunda e brilhante parte da frase, e as pessoas fizeram depois uma ligação inconsciente e passaram a considerar o Beatle falecido em 1980 como o autor. Agora, se olharmos bem para o assunto, até se poderá dizer que Jasper teria alguma razão. Se bem que Ringo conseguisse manter ritmos sem falhar, apresentava algumas falhas técnicas graves, nomeadamente não sabia fazer um "roll". Já Paul McCartney desenvencilhava-se bem a manipular as baquetas: veja-se, por exemplo, Back in the USSR, com que abrem o White Album (1968). E.M. 
Credence Clearwater Revival, Hey, tonight

Angola, onde nasci, passei a minha infância e da qual me sinto também parte, era nos finais dos anos 60 e primeira metade dos 70 um curioso ponto de encontro. Antes de mais, das riquíssimas culturas locais; depois, da música portuguesa que vinha da "Metrópole"; por fim, daquilo que fluía directamente do outro lado do Atlântico, curto-circuitando por vezes o controlo do Portugal salazarista - neste caso estavam, acima de todos, os artistas brasileiros, e depois os dos Estados Unidos.  
E desses nomes, um era de uma banda que, apesar de vida curta, teve influência na evolução do rock., nomeadamente na integração de alguns elementos de blues. Os Credence Clearwater Revival (CCR para simplificar) eram basicamente o veículo para o guitarrista, vocalista e compositor John Fogerty, antes de tudo se dissolver em lutas intestinas sobre dinheiro e controlo artístico, e que levaram o pobre do John a nunca mais se encontrar.
Mas nos CCR... ah, que canções. De uma especialmente recordo-me, vinda do gira-discos do meu primo Rogério, na casa ao lado. Era este Hey, tonight. É o que se pode chamar uma música que sabe bem o que é e o que quer. Curtinha mas com uma batida determinadíssima, com uma bela introdução das guitarras eléctricas, Fogerty no melhor da sua voz rouca, boa conjunção de acordes. A letra, concedo, está para lá da simplicidade - apenas sabemos que algo de bom se vai passar logo à noite. Ou seja, rock e descontracção do Sul dos States. Ouvidos nas tardes tropicais. E que continuam a soar muito bem. E.M.

Hey, tonight, Creedence Clearwater Revival (1970)

 

terça-feira, 21 de abril de 2015

Kraftwerk: multimédia acima da média
no Coliseu

Domingo à noite no Coliseu de Lisboa.
Concerto dos Kraftwerk. Sala cheia, faixas etárias alargadas, nacionalidades várias.
Início com pontualidade germânica.
Quase duas horas e meia de espectáculo. Setlist abrangente, mas mais focada no álbum de 1978 The Man Machine, de onde apenas não tocaram um tema.
A nível sonoro, quase nada apontar, cuidado com a meticulosidade que caracteriza o veterano projecto electrónico, e audível com qualidade, o que, e já o experimentei bastas vezes, pode ser muito traiçoeiro de conseguir no velhinho Coliseu, construído para actos novecentistas.
O grande destaque vai para a área visual. Os Kraftwerk sempre apostaram na imagem, nomeadamente desde que as tecnologias digitais se instalaram, e esta digressão é uma imersão nos 3D. Óculos catitas, com monograma da banda, entregues à entrada (o que fazia a plateia parecer um cinema norte-americano dos anos 50 a ver um qualquer monstro da lagoa), e um ecrã por trás dos quatro "músicos" que acabou - como eles querem - por ser o principal interveniente. Normalmente não sou muito adepto destas tecnologias, muitas vezes utilizadas de forma amadora ou simplesmente para disfarçar a fraqueza musical.
Não neste caso, em que a opulência das imagens está perfeitamente pensada e integrada com a qualidade da música, entrelaçando-se e potenciando-se mutuamente.
Ume experiência multimédia, era como se apresentava o espectáculo. Muito acima da média, diria eu. E.M.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Calexico, The crystal frontier

Joey Burns e John Convertino são os Calexico, projecto de Tucson, Arizona. Desde meados dos anos 90 têm aperfeiçoado cruzamentos entre country, o jazz, o rock e, especialmente, o tex-mex, que mescla as raízes musicais mais profundas dos dois lados da fronteira entre os Estados Unidos (tex, de Texas) e o México (mex). Um dos seus temas emblemáticos é exactamente este The crystal frontier, que vai buscar o nome a um livro do escritor mexicano Carlos Fuentes que trata das relações entre os habitantes dos dois lados dessa mesma fronteira, que de tão porosa é transparente.
Esta extensa versão ao vivo, gravada no Barbican de Londres em 2004, é simplesmente deliciosa, com a participação do grupo de mariachis Luz de Luna (de Tucson, Arizona!) e a interpolação de Ghost town, dos Specials, para além da imensa alegria pulsante que se consegue extrair de uma canção que basicamente trata das tristezas de se estar em não-lugares estilhaçados por linhas, rios e patrulhas. E.M. 


Calexico, The crystal frontier (2004)



domingo, 19 de abril de 2015

Manuela Moura Guedes, Foram cardos, foram prosas

A vida, como dizia o outro naquele filme reaccionário mas com uma bela banda sonora (Forrest Gump), é mesmo como uma caixa de chocolates. Quem poderia imaginar que numa época tão repleta de doces como foram os primeiros anos da década de 80, com o chamado boom do rock português, o maior bombom electropop viria de uma locutora de continuidade da RTP? Foram cardos, foram prosas é uma daquelas canções que nunca deixam de me encantar. Antes de mais, pela sua origem - música e produção de Ricardo Camacho, o médico eminência parda por trás dos Sétima Legião; letra de Miguel Esteves Cardoso, escritor, poeta, jornalista, crítico, ensaísta, professor e tudo o mais. Ou seja, desde logo uma imensa promessa de qualidade, concretizada depois na utilização de alguns dos melhores músicos de estúdio da época. A linha de caixa de ritmos com que se inicia a canção, e que se mantém sempre como a espinha dorsal a que se colam a bateria e o baixo, é daquelas que muitas vezes me apanho a cantarolar. O tom geral é épico, mas um épico provinciano, resguardado, de paixões que temem explodir. A letra é simplesmente sublime, ora mirem só:

Não foram poemas nem rosas
Que colheste do meu colo
Foram cardos foram prosas
Arrancadas do meu solo


Manuela Moura Guedes não tinha a melhor voz da paróquia (a carreira não passou do álbum de estreia e de fracasso de 1982, Álibi), e Ricardo Camacho terá mesmo dito que teve que puxar todos os faders da mesa de mistura do estúdio para que se conseguisse chegar às notas mais agudas. Mas tudo fica perdoado na magia da poção final. Tão à vontade para se ouvir numa festa "in" junto à praia como numa madrugada de nevoeiro beirã, Foram cardos, foram prosas é uma quinta-essência da música portuguesa, tão nacional como Tudo isto é fado ou E depois do adeus.


Foram cardos, foram prosas, Manuela Moura Guedes (1981)




sábado, 18 de abril de 2015

PRIMAL SCREAM, MOVIN' ON UP

O dia começou bonito em Lisboa. Céu azul, temperatura amena, um sábado para prazeres simples. Banda sonora escolhida, de acordo com estes parâmetros: Movin' on up, dos Primal Scream. De 1991, é o tema de abertura de Screamadelica, terceiro e importantíssimo álbum do alegre grupo de escoceses liderado por Bobby Gillespie. Representando bem a década de alegria e abundância antes da desilusão do milénio, Movin' on up é simplesmente um mantra de soul-gospel com um cheirinho dos Rolling Stones circa 1970 - afinal, era  ao estado de alucinogénica bênção da banda de Jagger e Richards que eles aspiravam. Todos juntos, afinadinhos com as "black backing vocalists":
"MY LIGHT SHINES ON!, MY LIGHT SHINES ON!"


Primal Scream, Movin' on up (1991)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

QUEM DISSE?

"Só gosto de homens bonitos, mas para ti vou abrir uma excepção."

Janis Joplin, sobre e para Leonard Cohen. Pelo menos é o que o bardo canadiano escreveu na letra de Chelsea Hotel #2, que é explicitamente dedicada ao breve relacionamento que ambos mantiveram. Dado que pouco depois a cantora morreu de overdose, Cohen afirmou mais tarde que se sente incomodado com a sua indiscrição tornada pública.
Otis, not Percy


A recentíssima morte de Percy Sledge voltou a dar mais uma vida ao seu grande êxito, When a man loves a woman. Não está em causa a grande voz do senhor, nem a forma  como ataca o tema. Mas tenho que confessar que esta canção em particular me irrita bastante, nomeadamente pela letra. É que ninguém sai bem da questão. O narrador, que é uma lesma que aceita fazer tudo o que a mulher lhe exige. A mulher, porque surge como uma megera que quer sacar tudo ao homem e que lhe exige até que deixe os amigos. E os ditos amigos, porque acabam por ver o seu amigo mudado e enfeitiçado pela mulher. Não será por acaso que When a man loves a woman tenha sido escolhida para ser assassinada por Michael Bolton, desde logo como piada recorrente que surgia na série Dois Homens e Meio.
Assim, proponho uma alternativa: These arms of mine, de Otis Redding. Escrita pelo próprio Redding no início da década de 60 e gravada em 64, é uma das pérolas de uma carreira tão injustamente curta como brilhante, terminada a 10 de Dezembro de 1967 num avião esmagado num lago do Wisconsin.
These arms of mine é um contínuo de desejo e de determinação, e quando a emoção se altera, no "middle eight", é apenas para subir ainda mais: "Just be my little woman, just be my lover". Basicamente voz, piano e bateria, é uma canção de apenas dois minutos e meio mas que dá para tudo, dançar, cantar, apenas ouvir ou declamar para quem está, se não ao pé de nós, pelo menos no nosso pensamento. E.M.

These arms of mine, Otis Redding (1964)








quinta-feira, 16 de abril de 2015

E o pior concerto?...

Ah, rapazes, eu estive bem umas três horas à espera que Michelle Shocked se dignasse arrastar o esqueleto até ao palco do Rock Rendez Vous (a mítica sala de espectáculos dos anos 80 ali à Rua da Beneficência, em Lisboa), quando já toda a gente lhe queria enfiar a guitarrinha pelas goelas abaixo, e recebeu um curso intensivo de insultos em português.
E em dezembro de 2005 tive a triste experiência de ir a um "concerto" dos Black Eyed Peas no Pavilhão Atlântico. Do imenso nevoeiro que depois me fez bloquear quase todas as memórias dessa noite trágica, ainda se escapa a imagem de Fergie a roçar o bumbum no palco e will.i.am a gritar "Benfica, Benfica!". O horror, o horror...
Mas, de novo, se tivesse que escolher um espectáculo apenas como o pior que vi até hoje, creio que iria pelo dos Transvision Vamp. Novembro de 89, de novo no Pavilhão dos Belenenses (onde vi, como descrevi em post anterior, o melhor concerto da minha vida, dos The Jesus & Mary Chain, e outros muito bons, como o dos Radiohead exactamente antes de alcançarem o estrelato). 
Era daquelas noites em que os dados são negativos à partida. Um pavilhão cheio, suor por todo o lado, irrespirável, más vibrações no ar. Depois entram os Transvision Vamp: a lourinha platinada Wendy James e os seus funcionários. Eles tocavam mal, as canções que em disco ainda passavam, de um rockabilly modernizado, ali perdiam toda a piléria. Em palco estavam-se marimbando para quem estava cá em baixo, e na plateia abundavam os grunhos a gritar para a vocalista mostrar as mamas. Ela não cantava grande coisa, e após ver no que se tinha metido em Lisboa nem sequer o tentou, entretendo-se a mandar vir com os que a aborreciam, parecendo uma peixeira de Manchester. O som estava péssimo. 
Estive lá até ao fim do concerto? Estive, pois acompanhava um amigo que estava a fazer a reportagem para um jornal, e que escreveu uma bela prosa de base sociológica sobre aquele circo. Nunca deixei de ter pena dos que pagaram para ir ver aquela vergonha, e quando pouco depois os Transvision Vamp deram a alma ao criador fiquei aliviado. Anos mais tarde Wendy James conseguiu que Elvis Costello lhe escrevesse um disquinho inteiro (Now Ain't the Time for Your Tears, de 1993). Não foi a lado nenhum. Quem diria. E.M.


quarta-feira, 15 de abril de 2015

John Lennon, Working Class Hero

Quando muito do legado de John Lennon a solo fica resumido na memória radiofónica a Imagine (cançãozinha sobrevalorizada) e Woman (pífia foleirice de um álbum póstumo santificado pelo assassínio do seu autor), está na hora de recuperar alguns dos momentos mais agitados, interventivos e singulares dessa figura complexa e contraditória que foi John Winston (mais tarde Ono) Lennon.
E Working Class Hero é um desses objectos. Incluído no álbum de estreia oficial a solo (John Lennon/Plastic Ono Band, de 1970), é uma prova de que a simplicidade genial é extremamente efectiva. Apenas  a voz de Lennon e ele a tocar a sua guitarra acústica. Poucos acordes, um mantra repetitivo, e uma linha que define toda a canção: "a working class hero is something to be".
Lennon estava em plena fase revolucionária, e provinha de famílias emigrantes irlandesas pobres, se bem que ele próprio nunca tenha feito um dia de trabalho operário, ao contrário, por exemplo, de Paul McCartney. Mas sabia do que falava, e o desprezo contido nesta canção de protesto contra as desigualdades de classes na Velha Albion não pode deixar de fazer eco em quem, neste século XXI, vê o abismo de riqueza entre pobres e ricos aumentar obscenamente. E.M. 

John Lennon, Working Class Hero (1970)




As soon as you're born they make you feel small
By giving you no time instead of it all
Till the pain is so big you feel nothing at all
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be


They hurt you at home and they hit you at school
They hate you if you're clever and they despise a fool
Till you're so fucking crazy you can't follow their rules
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be


When they've tortured and scared you for twenty-odd years
Then they expect you to pick a career
When you can't really function you're so full of fear
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be


Keep you doped with religion and sex and TV
And you think you're so clever and classless and free
But you're still fucking peasants as far as I can see
A working class hero is something to be
A working class hero is something to be


There's room at the top they're telling you still
But first you must learn how to smile as you kill
If you want to be like the folks on the hill


A working class hero is something to be
A working class hero is something to be
If you want to be a hero well just follow me
If you want to be a hero well just follow me

terça-feira, 14 de abril de 2015

Keep Razors Sharp

 Keep Razors Sharp, The lioness (2014)

Ao que parece, os Keep Razors Sharp são Afonso (Sean Riley & The Slowriders), Rai (The Poppers), Bráulio (ex-Capitão Fantasma) e Bibi (Pernas de Alicate). Ou seja, uma espécie de mini-supergrupo nacional. O que interessa aqui é que o álbum de estreia, homónimo, de 2014 desperta a curiosidade. Como repositório de influências estéticas dos vários membros, o disco apresenta pedacinhos de indie rock, hard rock, psicadelismo e neoprogressivo, e aposta muito mais nos instrumentos do que nas vozes, planantes e colocadas baixo no mix. Às vezes o conjunto não se conjuga, mas quando funciona soa mesmo muito bem. Sure thing pega na prancha para tentar entrar num filme de Tarantino, e Scars and bones consegue destilar o melhor dos Doors. Mas o melhor pedaço, e talvez por isso tenha sido colocado logo à cabeça, é The lioness, pescado ao segundo disco dos Stone Roses, o mesmo é dizer que se alimenta de riffs distorcidos à procura de grooves dos deltas africanos. Mantenham as garras afiadas, rapazes. E.M.

MELHOR CONCERTO DE SEMPRE?

Foram tantos e tão poucos, como diriam as Doce em Ali Babá... O primeiro a sério (Cheap Trick) é sempre especial, Bruce Springsteen também, alguns mais pequenos que, sem sabermos bem a razão, voltam regulamente à memória (Bolshoi no Metropolis, onde agora é um Pingo Doce ali à Praça do Chile)... Mas se tivesse que escolher apenas um, seria o dos The Jesus and Mary Chain em Dezembro de 1988 em Lisboa. Os manos Reid ainda estavam no auge da sua inventividade, com dois álbuns muito diferentes mas preciosos na bagagem - Psychocandy uma maré de distorção a disfarçar as harmonias à Beach Boys, e Darklands em completa regressão ao psicadelismo e às melodias byrdsianas.
O velhinho Pavilhão dos Belenenses estava a rebentar pelas costuras de devotos - Portugal, nunca o esqueçamos, devido aos divulgadores radiofónicos e à geral curiosidade pelo que vem do exterior, estava muito bem informado do que se passava por esse mundo musical fora. Jim e William encheram a sala fumarenta de guitarras e mais guitarras, de efeitos e de pedais, de lamentos e de introspecção britânica. Um concerto que valeu tanto pela música como pelas técnicas inovadoras, pelo ambiente de ligação entre público e banda, curiosamente uma banda que fazia gala de não se ligar verbalmente ou fisicamente a esse mesmo público. Ou seja, tive a sorte de os apanhar na fase em que o entusiasmo dos manos Reid escoceses ainda equilibrava um certo desprezo artístico (muito na onda dos seus ídolos, Reed e Velvet Underground) por quem os ouvia. No final, William atirou a guitarra para o chão e, dados os muitos pedais de efeitos que estavam ligados em série, a dita guitarra ficou para aí uns bons dez minutos a tocar sozinha feedback e white noise nas tábuas do palco. Uma audição para a vida.

O tema com que por essa altura os JAMC costumavam terminar os concertos: Sidewalking. E.M.




P.S.: Os The Jesus and Mary Chain tocam o álbum Psychocandy na íntegra ao vivo no dia 11 de Julho de 2015, no festival Alive, ali no Passeio Marítimo de Alcântara.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

AFECTIVAMENTE: GNR por LUÍS MAIO


Entre 1978 e 1988 o "rock português" nasceu, explodiu, consolidou-se e teve a primeira crise de crescimento.  A experiência estética foi sendo acompanhada de reflexões críticas, mas quase sempre a nível de produção espaçada e pontual em meios de comunicação social. Numa área específica praticamente virgem - a biografia -, foi o jornalista Luís Maio que deu um passo definitivo na profundidade e na metodologia. E fê-lo em 1989, com a edição, pela histórica Assírio & Alvim (Colecção Rei Lagarto), de Afectivamente, dedicado à vida e carreira dos GNR desde o nascimento até à Valsa dos Detectives. Para além de uma busca exaustiva de fontes (directas e indirectas), Luís Maio inovou em dois campos: formalmente, ao dividir as páginas numa parte de informação dada pelos próprios GNR em entrevista, e simultaneamente escrevendo as suas reflexões sobre o que eles contavam. Isto permitiu uma desconstrução crítica e uma reavaliação de semiverdades e ideias feitas; depois, ao analisar os GNR quer  na sua dinâmica interna, quer na sua relação com o público, o país e os seus pares, em vectores retirados da sociologia, psicologia e, sendo ao anos 80, atrevo-me a dizer que da semiologia.
Seminal e indispensável, quer para os amantes da banda, quer para os curiosos da música moderna nacional, ou para quem quer saber como se faz uma biografia com (muita) cabeça, tronco e membros. O livro ainda está disponível, e, sem querer fazer publicidade, podem procurar no site da editora - serão os 10 euros (mais coisa menos coisa) que melhor poderão gastar por estes dias. E.M
LORDE, Royals


Ainda há canções que nos agarram gentilmente pelo pescoço... Royals é uma delas. Em 2013, no meio do hip-electro-new-r'n'b-trash que prolifera pelas ondas hertzianas e digitais, surgia este objecto dificilmente identificável. Co-escrito e cantado por uma adolescente de Auckland, Nova Zelândia, Lorde de seu singelo pseudónimo (Ella Marija Lani Yelich-O'Connor de seu nome verdadeiro), Royals começa com um ritmo simples de bombo e estalos sintetizados, a que se junta logo uma voz determinada a declarar que "I've never seen a diamond in the flesh" - está dado o mote para um pedaço de pop minimal perfeitamente delimitado. Estamos nos antípodas dos apelos desenfreados do bling e do twerking, e nunca deixa de me surpreender como alguém com tão pouca experiência de vida pode já ter uma visão tão profunda e do que é importante e permanente. 
Há que dizer que sou um apaixonado pela Nova Zelândia, o país mais feliz do Mundo, e onde tive o privilégio de passar uns meses. Por isso, quando soube que que Royals foi concebido (se bem que burilado e produzido por Joel Little) por uma kiwi girl de Devonport, subúrbio boémio e artístico do Norte da baía da  maior cidade da Terra da Grande Nuvem Branca, percebi uma das razões da ligação imediata: há ali uma certa dose de estranheza  e singularidade insular que são próprias dos neozelandeses.


Lorde, Royals (2013)
 
 
 
P.S: Bruce Springsteen gosta de começar alguns concertos com temas do local onde está a actuar. A 1 e 2 de Março de 2014, abriu os seus espectáculos no Mount Smart Stadium, em Auckland, com uma versão a solo (voz, guitarra acústica e harmónica ) deste Royals. A nível de arranjo sonoro é como estar num outro universo, mas percebe-se que os dois artistas, de proveniências e idades tão afastadas, partilham o amor pela verdade e não sentem a necessidade do acessório. Para comparar
 
Bruce Springsteen, Royals (ao vivo, Auckland, 2 de Março de 2014)
 
 
 
 

domingo, 12 de abril de 2015

Barnett Newman, Be I: Emoção Pura



Um dia, quando ganhar o Euromilhões, terei uma questão premente para resolver: se só puder adquirir uma obra de arte, qual escolheria? Poderia muito muito bem ser esta Be I, de Barnett Newman. Completada pouco antes da sua morte em 1970, esta pintura de grandes dimensões (213 cm x 283 cm, acrílico sobre tela) exerce sobre mim um poder tal que basta olhar para ela numa reprodução digital em formato reduzido para me sentir preenchido. Grandes blocos de cor, o distintivo "zip" (linha vertical fina) de Newman a definir o espaço à sua volta, toda a emoção contida num local puro onde não entra qualquer figura. A abstracção no seu ponto mais emocional.
Agora, não sei até que ponto poderia adquirir este Be I. Como muitos dos nomes mais importantes da arte pós-Segunda Guerra Mundial, nomeadamente do expressionismo abstracto, tem muita da sua produção em museus, ou seja, em colecções de onde já não saem. Para além disso, não foi dos pintores mais prolíficos, tendo dedicado muito tempo à produção teórica, e faleceu relativamente novo (65 anos). Este quadro, curiosamente, esteve efectivamente em risco de sair da propriedade federal, pois pertence ao Detroit Institute of Arts, e quando a Cidade dos Motores entrou em bancarrota, uma das medidas equacionadas para conseguir receitas foi exactamente a venda de parte das colecções de arte públicas. Felizmente, franjas importantes da população reagiram - e parece que tal desafectação poderia ser tendencialmente ilegal... -, pelo que esta magnífica e impressionante peça pode continuar a ser desfrutada pelos (neste ponto) sortudos  cidadãos de Detroit.  
 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Mezzoforte, Garden Party


Inesperado nem é bem a palavra. Em 1983, um dos êxitos radiofónicos surgidos do nada foi um instrumental de um grupo de jazz-funk proveniente da... Islândia! Garden Party, apoiado em riffs de saxofone e trompete, a que se somava um longo solo de fliscorne cortesia do trompetista inglês Stephen Dawson, tinha a mistura certa de apelo lounge e imaginário tropical para ser popular sem cair no popularucho. Para além disso, pegou de estaca (termo desportivo brasileiro bem apropriado) como trilha instrumental para muitos locutores nacionais falarem por cima. A versão longa que aqui apresentamos acompanhou-me a ouvir tantas tardes desportivas da Antena 1... Passados estes anos, ainda soa agradável. Só me falta uma bebida fresquinha na mão para começar a ouvir Costa Martins, editor de desporto da emissora pública por essa década, a apresentar os resultados da 2.ª Divisão: "Espinho-Famalicão, Fafe-Felgueiras."

Mezzoforte, Garden Party (1983) 




quinta-feira, 9 de abril de 2015

Cidadãos de Madrid, alegrai-vos!...

... pois viveis numa cidade onde todos os domingos à tarde, gratuitamente, podem ir a um belíssimo edifício (bem, tecnicamente são dois, o antigo de Francisco Sabatini e a ampliação de Jean Nouvel) e admirar a Guernica (1937), de Picasso e Equal-Parallel: Guernica-Bengasi (1986), de Richard Serra. Claro que são apenas duas, se bem que das mais capitais, obras presentes no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía, ali mesmo ao virar da esquina da Estação de Atocha e do Parque do Retiro. Passei lá demasiado rapidamente, pois havia, por exemplo, uma exposição temporária vinda de Basileia onde pontuavam nomes grandes do minimalismo e da arte conceptual, como Donald Judd e Bruce Naumam. Senti-me humilde perante a magnificência, humanidade e importância de ambas as peças, e pareceu-me que os madrilenos apreciam muito esta sua instituição.



Equal-Parallel: Guernica-Bengasi (1986), de Richard Serra



Guernica (1937), de Pablo Picasso


Caetano e Gil em Oeiras

Caetano Veloso e Gilberto Gil
Cool Jazz Fest
Estádio do Parque dos Poetas, Oeiras
31 de Julho de 2015 (domingo), 21h30
http://www.edpcooljazz.com


Primeira mirada para Terras de Vera Cruz aqui no Nascidoparaouvir.
E atenção, vamos desde já desmistificar: o Brasil não é aquele baú repleto de artistas de imensa qualidade que não conseguem pôr o pé em ramo verde esteticamente. O Brasil é, sim, um país de 200 milhões de habitantes, dos quais um ou outro milhão dedicam-se às artes, e destes parte significativa à música. Mas a maioria destes são conjuntos de falso country e funk de favela e baladas lamechas com um nível tão baixo que devia fazer corar os defensores acéfalos do transatlantismo.
Há, sim, um punhado de génios (Elis Regina, Tom Jobim, João Gilberto, Caetano Veloso, Chico Buarque, Herbert Vianna, Oswaldo Montenegro), algumas dezenas de projectos bons ou interessantes, e pouco mais.
Por aqui, quero saudar um concerto integrado na edição 2015 do Cool Jazz Fest. Nada mais nada menos que Caetano Veloso e Gilberto Gil, juntos, sozinhos, com as suas violas, a cantar "Um Século de Música”, pois já lá vão cinquenta anos desde que começaram a moldar a música brasileira, ainda nos resquícios da bossa nova mas já definindo o que viria a ser a MPB. Dois amigos, dois gigantes da arte em língua portuguesa, num espaço talvez um pouco grande de mais para o formato acústico (o estádio do Parque dos Poetas, em Oeiras), mas tudo se comporá se o dia(noite) estiver cálido. Para quem não estiver a banhos fora da Grande Lisboa, indispensável.
Ficam aqui dois temas, um de cada artista, curiosamente ambos ligados aos elementos. No primeiro, Terra, mano Caetano passa pela Baía, pelos pelourinhos e pelas prisões para fazer uma ode comovente ao planeta onde todos temos que viver. Depois, Gilberto Gil molha-nos com Luar (A gente precisa ver o luar), de 1981, quando o futuro ministro da Cultura aspirava sofregamente as influências do funk norte-americano e as espalhava pelas sonoridadades baianas. Delicioso.

Caetano Veloso, Terra (1978)
Por mais distante, o errante navegante, quem jamais te esqueceria

Gilberto Gil, Luar (A gente precisa ver o luar) (1981)
Se a noite inventa a escuridão, a luz inventa o luar







 
 

Wildwood Flower


10.000 Maniacs, Wildwood flower

Os 10.000 Maniacs foram uma daquelas bandas que passaram injustamente ao lado de uma grande carreira. Nos inícios dos anos 80, desceram lá do alto do estado de Nova Iorque, de uma cidadezinha tão pequenina que só recebia um único exemplar do New Musical Express (lendário jornal semanal britânico que nas décadas de 1970 a 1990 era extremamente influente). Colectivo de ideias (socializantes), de tendências artísticas mais latas (literatura, pintura), de diferentes origens (os apelidos parecem um mapa da Europa), utilizaram essa insularidade para desenvolver um rock-folk límpido e de intervenção que tocou em consciências liberais na Europa e no circuito universitário dos States, mas pouco mais.      
Num dos meus discos de cabeceira - o CD duplo Campfire Songs: The Popular, Obscure and Unknown Recordings (2004), uma retrospectiva de "êxitos" e raridades -, surge este Wildwood flower. Tradicional folk norte-americano registado pela década de 1860, foi popularizado pela Carter Family na altura da Grande Depressão, e mais tarde recuperado por June Carter, esposa de Johnny Cash (como curiosidade, podem espreitar Reese Witherspoon a cantá-la no papel de June no filme Walk the Line).
Wildwood flower não chega a dois minutos, mas o seu efeito supera largamente a sua curta duração. Arranjada em ritmo bem rápido, de uma alegria saltitante e contagiante, distribuída generosamente pela rabeca, mostra uma faceta de desprendimento que a voz de Natalie Merchant poucas vezes apresentou, pois os 10.000 Maniacs têm lados muito mais sérios e profundos, que tentaremos abordar noutras ocasiões.
Ao ouvir "I will dance, I will sing, and my laugh shall be gay" apetece-me ter oito anos outra vez e saltar pelo pátio. Efeito conseguido, pois então.



10.000 Maniacs, Wildwood flower (2004)

XTC e AMIZADE

O que é a amizade? Nos anos 80, podia ser, e foi, juntar os trocos de adolescentes com os três inseparáveis melhores amigos para juntar 120 escudos (equivalente a 1,10 euros!?...) e ir pela noite até à discoteca Lido (neste caso, no sentido de loja de venda de discos) e comprar um single: Senses working overtime, dos XTC. É daqueles momentos que ficam coladinhos lá no fundo da memória, e que voltam sempre quando ouço esta bela canção do grupo inglês. Este post vai, com a permissão geral, com dedicatória para Tozé D., Pedro F. e Zé Joaquim F., que tiveram um papel determinante na minha formação musical primeva.



Senses working overtime, XTC (1982)

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Sitiados, Aguardela e desgraça na Graça

João Aguardela, o poço de ideias, inovação e energia que esteve por trás dos Sitiados e d'A Naifa, morreu antes de fazer 40 anos (em Janeiro de 2009, mais exactamente). Mais do que lamentar tudo o que ainda poderia ter feito pela música portuguesa, através da sua paixão por estilos díspares como o rock, o fado e os ritmos da América Latina, quero exaltar o imenso que fez. E há uma canção sua, escondidinha no final do álbum O Triunfo dos Electrodomésticos (1995), dos Sitiados, que me é muito querida.
Pesadelo na Travessa do Olival à Graça, como soi dizer-se nos filmes, é "baseada em factos reais". Nela Aguardela conta a história de um casal que vivia na dita travessa lisboeta, e que gostavam tanto um do outro como se atiravam aos respectivos pescoços em discussões de fazer bicho. Os colegas e amigos que por lá passavam eram testemunhas destas desavenças, e João, com o seu olhar perscrutador, fez delas uma canção em que o ácido das disputas e das diferenças de temperamento não apaga um carinho muito lisboeta. E sei disto de fonte segura, pois morei na dita Travessa do Olival à Graça, com uma pessoa que conhecia bem os protagonistas. A casinha ainda lá está, mas agora bastante mais composta e com inquilinos mais bem comportados.
A João Aguardela, uma imensa vénia.



Pesadelo na Travessa do Olival à Graça, Sitiados (1995)


terça-feira, 7 de abril de 2015


Sting: entre New Orleans e o Parque das Nações

Festival Super Bock Super Rock
Dia 16 de Julho de 2015 (quinta-feira)
Parque das Nações, Lisboa
www.superbocksuperrock.pt



Stewart Copeland, baterista dos Police, disse certa vez que Sting tinha tido um percurso curioso. Segundo Copeland, nos anos 70, quando se conhecerem e fundaram os Police, Sting era um péssimo ser humano mas estava totalmente dentro do espírito musical da época (punk, new wave, reggae). À medida que ia ficando mais velho, foi melhorando enquanto pessoa, mas perdendo o contacto com a realidade musical.
Não se pode deixar de concordar com Stewart. O que foi transpirando das relações entre os três "polícias" (Sting no baixo e voz, Stewart Copeland na bateria e Andy Summers na guitarra) foram atitudes prepotentes do líder, que apenas queria gravar canções suas, razão por que no álbum Zenyatta Mondatta (1980) tudo são temas compostos por Sting, excepto Bombs away, de Copeland, e Behind my camel, de Andy Summers. Esta última chama-se assim porque Sting dizia que por trás de um camelo estava uma pilha de... digamos, excrementos, e era isso que ele considerava a composição do guitarrista.
Para além disso, Sting exibia já as suas atitudes de grande comandante da esquerda ecologista (muito pouco consentâneas com a sua posição ditatorial dentro da banda, sublinhe-se), enquanto Stewart, cujo pai era um agente da CIA, se aproximava das linhas mais direitistas. As discussões entre os dois, ao que parece, eram de fazer saltar o tecto do estúdio.
Com amigos destes... só restava a separação em 1985. Sting foi para uma carreira a solo inicialmente muito bem-sucedida, aproveitando a sua fama para atrair grandes nomes do jazz e do funk para colaborar. Mas, e como já dizia Copeland, foi-se fechando e estiolando musicalmente, e as suas últimas aventuras com alaúde (!!!) são inenarráveis - mas foi ficando uma pessoa mais simpática, e convidou os seus dois antigos companheiros para tocar Message in a bottle no seu casamento, e em 2008 embarcaram numa milionária digressão mundial antes da dissolução final.
No primeiro álbum a solo, The Dream of the Blue Turtles (1985), surge um curioso tema, com laivos de jazz e dos clássicos musicais da Broadway. Chama-se Moon over Bourbon Street, fala do amor de um vampiro por uma jovem de famílias bem em New Orleans. A canção é elevada a outro nível pela presença do grande saxofonista Branford Marsalis e pela preferência de Sting pelo contrabaixo.
Sting actua no Super Bock Super Rock em 16 de Julho.


Moon over Bourbon Street, Sting (1985)



 




segunda-feira, 6 de abril de 2015

CANÇÕES DE PAIXÃO
PARA DIAS DE CHUVA

Fall in love with me / I hope that I don't fall in love with you

No duelo de canções de paixão cantadas em tom moderado, no canto esquerdo temos Tim Booth, vocalista dos James, num projecto - Booth and the Bad Angel - anos 90 em que era acompanhado por Angelo Badalamenti, notabilizado por ter colorido filmes de David Lynch como Blue Velvet. E é exactamente para o ambiente de decadência voluptuosa que se desprende de Isabella Rossellini nessa película que nos remete a primeira linha de Fall in love with me: "Ease your lips into a velvet kiss while I enfold you". Felinamente orquestrado, vogando numa melodia como uma gôndola em Veneza, é um calmante em forma de canção.


No canto direito, surge Tom Waits. Aqui o ambiente é mais de salão de cidadezinha perdida. A voz de Waits (um dos poucos grandes nomes da música contemporânea que nunca veio a Portugal) é um desses instrumentos desconcertantes que não deviam funcionar mas funcionam. Canção telúrica, enganadoramente simples nas suas guitarras acústicas, de alguém já batido na vida apesar da pouca idade (em 1973, ano de edição do álbum de estreia, Closing Time, onde este tema está incluído, Tom tinha apenas 24 anos), mostra a dúvida de um homem a mirar para uma mulher, pleno de dúvidas mas com certezas de que o melhor será não se apaixonar por ela. E a última linha dá a reviravolta, ele sabe que não deve dar esse passo, mas a esperança da salvação é maior que o medo do precipício: "And I think that I just fell in love with you".

                              Fall in love with me, Booth and the Bad Angel (1996)




I hope that I don't fall in love with you, Tom Waits (1973)


UM  POUCO DE FÉ COM OS XUTOS
 
E primeira incursão do Nascidoparaouvir nesse imenso caldeirão de delícias e tormentos que é a música portuguesa. Por onde começar? Que tal por (aviso de lugar-comum!) a "instituição do rock português" que são os Xutos & Pontapés? E já agora, por aquela canção que terá um dos percursos mais curiosos: Contentores? 
Contexto histórico: após uma década de mudanças de pessoal e de editoras, os Xutos tinham por volta de 1985-1986 uma legião(zita) de seguidores muito fiéis, que colocavam a sua fé de punks e outsiders nas canções de revolta secas e impuras como Remar, remar ou Esquadrão da morte. Assim sendo, Contentores só podia surgir como uma provocação. Tema de abertura do álbum Circo de Feras, primeiro para uma multinacional, produzido por um homem vindo das franjas mais pop (Carlos Maria Trindade, teclista dos Heróis do Mar), Contentores mostrava caixa de ritmos (horror!), saxofone (credo!!) e uma produção limpinha a apontar para o - inevitável, como se veio  a perceber - êxito de vendas e para a implantação do grupo na tapeçaria da cultura portuguesa.
Mas é como diz esse outro "ícone" nacional, Pessoa: primeiro estranha-se, depois entranha-se. Hoje é difícil ouvir Contentores sem um arrepiozinho na espinha, nomeadamente a "coda" final de "um pouco de fé".
Quanto aos Xutos, são hoje senhores comendadores de meia-idade, mas ainda a última vez que os vi ao vivo notei um sorriso diferente na boca de Tim quando soltou o inicial "a carga pronta e metida nos contentores". Longa vida, companheiros de tantas aventuras.

Xutos & Pontapés, Contentores (1987)

... E ESPAÑA: Desinibição em 2002


Um quarto de século depois de María Ostiz, vamos, como diriam os Monty Python, para algo completamente diferente. Ou não? Enquanto em 1976 a cantora asturiana entoava seriamente uma loa às virtudes necessárias a um povo, em 2002 Las Ketchup inundavam o mundo de Asereje. Uma cançãozinha descomplexada de Verão, vinda do mais popular baile de dança da Meseta, com uma produção modernaça, a falar de um jovem com "gafas de contrabando" (ele próprio um clandestino?) e a ir para a discoteca. Sinais da década de ouro do país vizinho antes da crise? Se calhar, apenas outra versão da alegria espanhola. O esforço das três filhas do Tomate (Juan Muñoz, o pai guitarrista de flamenco) valeu-lhes mais de 12 milhões de discos vendidos pelo planeta fora. Aqui vale pela comparação com Un pueblo es.

O refrão, ao que consta, é uma versão acastelhanada de Rapper's delight, dos Sugarhill Gang, uma das muitas canções que por aqui passarão vivendo debaixo da asa da linha de baixo de Good times dos Chic, criada e originalmente tocada pelo fantástico Bernard Edwards.

Para quem quiser desopilar no regresso ao trabalho após as folgas de Páscoa, eis a letra (esperamos...):
 Aserejé ja de je de jebe
         Tu de jebere sebiunouva
Majabi an de búgui
         An de buididipí
 
 
Asereje, Las Ketchup (2002) 
 
 

domingo, 5 de abril de 2015

ESPAÑA: Esperança em 1976...

De regresso de uns dias em Espanha, onde só se ouve espanhol, seja na rádio ou na televisão. Se por um lado se admira o empenho com que defendem a sua língua e a sua cultura, não se pode deixar de questionar se não haverá também um isolamento  que os faz perder oportunidades de "abrir as orelhas". Os madrilenos, por estes dias, pareceram-me muito à vontade na sua pele, em harmonia e em alegria. O que me recordou uma canção de 1976 de María Ostiz, asturiana com uma carreira curta. Chama-se Un pueblo es, e foi um dos hinos da transição da ditadura franquista para a democracia. Canção de esperança, de unidade e de trabalho, parece-me que traduz bem o espírito espanhol, apesar da crise e das diferenças autonómicas.

María Ostiz, Un pueblo es (1976)
 
 


 

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Blur: O regresso em 2015

É um daqueles regressos que já estavam previstos. Após muitos anos de ausência do guitarrista Graham Coxon e sem álbum de originais desde 2003, a aproximação vinha sendo feita segundo as regras clássicas das bandas rock. Primeiro uma junção esporádica para ver como se poderia lamber as feridas de antigas feridas, e que resultou na belíssima ode a Londres que é Under the westway (a autoestrada que rasga a capital britânica desde o Centro até aos subúrbios ocidentais). Depois um Verão de poucos concertos, essencialmente em festivais, e que passou pelo Porto. Agora, aí vem o novo álbum, The Magic Whip, com distribuição marcada para dia 27 de Abril. Pela net podem já ver Go out e There are too many of us e ouvir Lonesome street. À primeira audição, estamos perante uma consciente vontade de recuperar as linhas mestras dos Blur pré-Parklife, ou seja, timidez e discrição, britishness e inteligência, pop ligeiramente dissonante e produção mais rugosa que limpa. Mais para a frente virá a audição mais cuidada. Por agora, a marcação também na agenda do concerto de dia 17 de Julho, no palco principal do Super Bock Super Rock, agora no Parque das Nações (Pavilhão Atlântico e redondezas), e o prazer de ver que o baixista Alex James continua um poço de cool, com o seu politicamente incorrecto cigarro boémio equilibrado ao canto da boca. 

Blur, Lonesome street (apenas áudio)

 
Blur, There are too many of us
 
Cynthia Lennon

A morte de Cynthia Powell Lennon, primeira esposa de John Lennon (entre 1962 e 1968), é mais uma pedrinha que desaparece dessa montanha de recordações, conhecimentos e acontecimentos que engolfam os Beatles. Cynthia, colega de faculdade de John, foi uma testemunha privilegiada dos anos formativos e de afirmação da banda de Liverpool. Em 2005, na biografia mais detalhada, sintomaticamente intitulada John, Cynthia surge como alguém com  tendências artísticas, concretizadas na entrada para a escola de Belas-Artes, mas cuja direcção na vida se alterou totalmente quando conheceu Lennon. A sua existência foi ferreamente escondida do mundo exterior quando a banda do marido começou a sentir a fama - mesmo Ringo Starr só meses depois de entrar para o lugar de baterista soube que ela e Lennon eram casados, quando John, na assinatura de um contrato, disse que tinha dependentes financeiros. A vertigem da Beatlemania não deu tempo para pensar, e logo Lennon começou a sentir que Cynthia era demasiado middle of the road para si - estava aberto o caminho para a entrada em cena de Yoko Ono, que era tudo o que a primeira mulher não era: extravagante, artista de nível internacional, vanguardista, conceptual, inquieta e sexualmente liberadora. O processo de abandono (que também tolheu Julian, o filho de ambos) mostrou um dos lados mais sombrios de Lennon/Ono, e um dos mais ingénuos de Cynthia, que acabou com uma verba quase simbólica e que teve que lutar pelos direitos de Julian, num processo que apenas venceu nos anos 80.
Que se saiba, e ao contrário do que aconteceu com Yoko, John Lennon não dedicou explicitamente nenhuma canção a Cynyhia - o que freudianamente poderia já indiciar que não queria manter-se ligado a ela. Mas gostaria de imaginar que I saw her standing there, que abre o álbum de estreia dos Beatles (Please, Please Me, 1963) e foi escrita por Lennon em colaboração com Paul McCartney, poderia ter sido espoletada por uma visão de Cynthia a dançar num dos bailes do salão da Faculdade de Belas-Artes de Liverpool.
Cynthia Lennon, dançando algures noutra dimensão. "One, two, three, four!"

The Beatles, I saw her standing there (1963)